Um comerciante indiano pega grãos de um saco no jardim do Comitê de Produção e Mercado Agrícola (APMC, na sigla em inglês) em Bangalore, na Índia
Às voltas com os paradoxos que nos cercam em tempos tão sensíveis, amplio minha percepção na leitura diária de jornais e sites. Basta reavivar a memória um pouquinho para que os desafios se apresentem tais como são, obedecendo a uma ordem mundial que construiu (seria melhor dizer forjou?) paradigmas e desafios por conta da “necessidade de desenvolver economicamente e se preparar para alimentar9 bilhões de pessoas em 2050”. Usei as aspas de propósito, para demarcar um discurso-quase-um-mantra. É possível pensar diferente, agir diferente, mostram vários estudos feito sob a lógica de uma economia mais inclusiva.Mas parece que estamos hipnotizados pela retórica da globalização.
Uma notícia publicada sexta-feira (23) no jornal “Valor Econômico” pode ilustrar bem o meu pensamento. Consta que a empresa indiana United Phosphorus Limited (UPL) – com esse nome, já é possível prever que se trata de uma transnacional, e não indiana -- pretende investirR$ 1 bilhão na construção de uma fábrica de “síntese e produção de agroquímicos no Brasil”. O ministro da Agricultura brasileiro, Blairo Maggi, fez o anúncio em Nova Déli. A empresa confirmou lá, mas não conseguiu se organizar para responder às perguntas da repórter Mariana Caetano, que assina a reportagem.
Em nome de maior exatidão, e para tentar costurar meu raciocínio, vou pinçar do corpo da notícia uma informação mais do que relevante. A UPL é uma das maiores fabricantes de defensivos genéricos (pós-patente) do mundo.É bom lembrar também queo maior “benefício” das sementes transgênicas, conforme os anúncios da época de seu lançamento, seria justamente a diminuição do uso de agrotóxicos em sua produção.Não aconteceu, e agora já há companhias transnacionais especializadas em produzir remédios para as pragas de sementes geneticamente modificadas.
É importante também, para continuar a linha de reflexão, juntar outra informação que não está na reportagem. O Brasil já é, desde 2008, o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, mesmo daqueles produtos que são proibidos em outros países. Essa informação está no “Dossiê Abrasco – Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde”, lançado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) no ano passado, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, editado pela Expressão Popular.
Trata-se de um estudo feito a várias mãos que rendeu quase 500 páginas preenchidas com dados que ajudam a desconstruir o discurso sobre a necessidade dos produtos químicos para ajudar a alimentar as pessoas.
Mas, antes de chegar a esse ponto, quero me deter em outra retórica repetida incansavelmente e que ajuda a explicar o tom de euforia do ministro Maggi reproduzido na reportagem do “Valor”. A percepção de quem busca o desenvolvimento a qualquer custo é a de que uma fábrica dessas chega ao Brasil para trazer empregos, dinheiro, melhorar a vida de todos.  Mas é só olhar os números da desigualdade social, é só estudar os dados dos índices que revelam a distância entre progresso e bem-estar social, para ver que essa percepção não leva em conta o mais importante.
 Vamos destrinchar essa informação com alguns outros dados importantes sobre PIB (Produto Interno Bruto). Sabe-se que ele representa a soma de todos os bens e serviços produzidos no país.  Nesse sentido, tanto a fábrica de defensivos quanto o número de leitos de um hospital entram para agregar valores ao PIB. E podemos estar diante de um cenário que não é nem pouco usual:  hospitalizado por conta do uso excessivo de agrotóxicos, o pequeno produtor vai ocupar um leito. Pronto. Os números avançam, a economia esquenta.

Voltando à questão da transnacional que entrará no Brasil a partir da Índia.   A reportagem conta que a empresa planeja desenvolver pesquisas com lentilha no país. E aí eu fico sabendo que a Índia é o maior país consumidor dessa leguminosa do mundo e importa metade daquilo que consome. Fico sabendo ainda que o Brasil, a partir da tal empresa, se prepara para ser o grande fornecedor de lentilha para a Índia. 

É fato para se comemorar se a visão for unicamente  desenvolvimentista.  Mas há muito o que pôr na balançase a ideia for, de fato,  construir um novo paradigma, uma nova ordem mundial,priorizando as pessoas e não as estatísticas, números, cifras.  Quando  vejo os líderes reunidos em torno de um Acordo Climático mundial, ouso acreditar que a ideia é mudar o rumo da prosa, verdadeiramente.

Há um discurso recorrente por parte das empresas de alimentos  e das pessoas que defendem o sistema global de nutrição.  Para eles, é preciso trabalhar com grandes escalas para conseguir  fazerchegar alimentos a 7 bilhões de pessoas. Isso explicaria o fato de precisarmos de uma empresa transnacional para levar lentilhas do Brasil para a Índia, um dos principais países produtores da leguminosa.No entanto, a realidade é que são os pequenos fazendeiros, com suas produções quase artesanais, que conseguem prover 70% dos alimentos no mundo.

Este sistema de produção agrícola tradicional utiliza menos terra, menos água e poucos recursos naturais quando se compara às grandes corporações. Além disso, seus grãos são mais saudáveis e diversos. Eles protegem os solos, a água e os ecossistemas, e estão mostrando que são mais resilientestambém às mudanças climáticas. Esse método de agricultura tradicional pode nos mostrar o caminho da verdadeira segurança alimentar.

Essas informações estão no documentário “Seeds of freedom” (“Sementes da liberdade”, em tradução literal), co-produzido por The Gaia Foundation & African Biodiversity Network,onde a indiana Vandana Shiva, fundadora do Banco de Sementes, alerta para o fato de que o governo de seu país abriu o mercado para as corporações de sementes em nome do desenvolvimento da pesquisa.  Não seria um grande mal, não fosse o fato de que tais empresas ganham também total liberdade, sem nenhuma regulação do governo. Por causa disso, foram se transformado em máquinas de ganhar dinheiro.

Membro do Partido Verde do Reino Unido, Caroline Lucas diz que a questão é que as grandes corporações da cadeia de sementes têm cada vez mais controle sobre o estado. Isso quer dizer que há um número muito pequeno de pessoas com influência massiva nas práticas tradicionais dos fazendeiros de guardar sementes. O lucro das corporações está à frente da habilidade dos fazendeiros se alimentarem.  A si e a suas comunidades.

Tanto na Índia quanto na África e em vários países da América Latina, as sementes são produtos de uma cultura. E isso tem se perdido por conta das transformações genéticas, da necessidade do uso cada vez maior de pesticidas.

Outra saída apontada por quem estuda a questão é a agroecologia, apontada pelo ecosocioeconomista Ignacy Sachs no Dossiê Abrasco como “um exemplo de um novo saber”. Um agroecossistema é um local de produção agrícola que proporciona uma estrutura com a qual se pode analisar os sistemas de produção de alimentos como um todo, incluindo seus conjuntos complexos de insumos e produção e as interconexões entre as partes que o compõem.

Ocorre que as experiências agroecológicas não recebem insumos por parte do governo como recebe o agronegócio.  A mudança poderia começar a acontecer aí.

Veja no G1